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A primeira coisa que esquecemos quando um amor chega ao fim raramente é a pessoa. Esquecemos o som da voz… o cheiro… o jeito de rir.
As pequenas lembranças se dissolvem devagar, como um giz apagado numa lousa antiga. E mesmo quando achamos que esquecemos tudo, basta um detalhe qualquer para que aquele passado inteiro se reconstrua diante de nós. Um perfume que cruza nosso olfato numa calçada traz uma avalanche de lembranças.
O cinema, a literatura e até os jogos já entenderam isso: a memória é a mais delicada das ficções humanas.
E talvez por isso, seja também o alicerce daquilo que chamamos de identidade.
A ilusão do alívio
Em Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, Joel, interpretado por Jim Carrey em uma de suas melhores atuações, acredita que pode apagar Clementine, Kate Winslet com um lindíssimo cabelo azul e, com ela, todo o sofrimento. Quer um recomeço, um silêncio interior. Mas à medida que as lembranças se apagam, ele percebe que a dor é inseparável da ternura, e que eliminar uma é também destruir a outra.
Não há como arrancar o que dói sem arrancar também o que nos faz humanos.
As lembranças não são apenas registros do que aconteceu; são a argamassa que sustenta o que somos.
Memórias inventadas, identidades fabricadas
Em O Vingador do Futuro, a lógica se inverte. Lá, as lembranças não são apagadas, mas inseridas. Douglas Quaid, Arnold Schwarzenegger, acredita ser um simples operário, até descobrir que talvez tudo o que viveu tenha sido uma programação implantada.
É o mesmo dilema, visto do espelho oposto: se podemos receber lembranças falsas, até que ponto nossa identidade depende do que de fato vivemos?
Seríamos nós mesmos se nossas memórias fossem trocadas?
Ou somos apenas o conjunto de percepções e experiências armazenadas, mesmo que artificiais?
A provocação é inquietante.
Se as lembranças moldam nossa personalidade, então memórias fabricadas poderiam criar novas versões de nós. Um herói, um vilão, um amante, um covarde. Tudo dependeria do enredo instalado em nossas mentes.
Mas, se acreditamos plenamente nelas, se sentimos de verdade aquilo que nunca aconteceu, ainda assim seria mentira?
A lembrança como desejo
O jogo To The Moon leva esse questionamento a outro nível de delicadeza.
Nele, um homem à beira da morte tem o desejo de chegar à Lua. Incapaz de realizá-lo, recorre a uma tecnologia que pode reescrever suas memórias, fazendo-o acreditar que viveu essa jornada.
A história é sobre o amor, a perda e o arrependimento, mas, acima de tudo, sobre o poder redentor da lembrança.
Mesmo que o sonho seja construído artificialmente, ele oferece paz.
E nesse instante, a pergunta volta a ecoar: o que importa mais, viver algo de fato, ou acreditar com todo o coração que viveu?
O que nos faz ser quem somos
Essas obras, cada uma à sua maneira, apontam para o mesmo abismo filosófico: se as lembranças definem nossa identidade, então o que acontece quando as perdemos?
Alguém que sofre de demência e perde progressivamente as memórias deixa de ser quem sempre foi?
Ou há algo além, uma essência que persiste mesmo quando as lembranças se apagam?
Talvez sejamos mais do que arquivos mentais. Talvez sejamos o movimento entre o que lembramos e o que esquecemos.
As experiências moldam, mas o esquecimento também reorganiza.
A vida não é só a soma das lembranças… é também o espaço entre elas.
Último Ato
Joel, Quaid e o velho sonhador de To The Moon têm algo em comum: todos tentam controlar a memória. Uns querem apagar, outros criar, outros corrigir. Mas em todos os casos, há o mesmo erro humano, acreditar que a lembrança é um peso que se pode mover à vontade.
Talvez o verdadeiro brilho eterno não esteja em uma mente sem lembranças, mas em uma mente que aceita carregar suas cicatrizes.
Porque, no fim, somos feitos das histórias que nos contam e das que contamos a nós mesmos.
E se um dia tudo se apagar, talvez reste apenas o sentimento, essa forma silenciosa de lembrança que não precisa de imagens para existir.
José Maria Santiago, médico psiquiatra e professor de medicina, é um explorador da mente humana e um aficionado por cultura pop. Entre aulas e consultas, também encontra tempo para debater filmes, séries e games no seu podcast, o Encontroverso, onde o cérebro e o entretenimento se encontram. Especialista em fazer a ciência caber numa conversa de café e em emitir opiniões baseadas em certezas que não tem, acredita que o equilíbrio está entre a compreensão profunda da psique e uma maratona de filmes ruins bem escolhida!
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