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O ritual do susto
Há algo de profundamente humano na forma como celebramos o medo.
No Halloween, acendemos velas, vestimos máscaras e convidamos o desconhecido a entrar pela porta da frente. Rimos do que nos assusta, transformamos o horror em jogo, e o pavor em fantasia. É como se, por um instante, pudéssemos domesticar o que não controlamos.
Mas por que o medo nos atrai tanto? Por que procuramos o terror nas histórias, nas telas, nos corredores escuros de uma casa enfeitada para assustar?
A resposta talvez esteja no fato de que o medo é o mais antigo dos nossos professores. Ele é anterior à linguagem, à cultura e até mesmo à consciência. É o instinto que nos manteve vivos, mas também o sentimento que nos ensinou a reconhecer a fragilidade do que somos.
Três caminhos para o medo
Durante muito tempo, acreditou-se que o medo era simplesmente aprendido por meio do condicionamento: um estímulo neutro associado à dor se tornaria, por repetição, um sinal de ameaça. Era o modelo de Pavlov, de Watson e do pequeno Albert, aquele bebê que passou a temer um rato branco após ouvir um som aterrorizante.
Mas o psicólogo Stanley Rachman, em 1977, mostrou que a realidade humana é mais complexa. Ele propôs que os medos não nascem apenas da experiência direta, mas também de duas outras vias: o aprendizado vicariante, quando observamos o medo no outro, e a transmissão simbólica, quando somos ensinados a temer.
Assim, há quem tema cachorros por ter sido mordido, quem tema porque viu alguém ser atacado, e quem tema apenas porque ouviu que cães são perigosos.
O medo, portanto, é também uma herança social. Ele é contado, transmitido, aprendido por meio das histórias que repetimos para proteger quem amamos.
O Halloween, nesse sentido, é uma metáfora perfeita: uma noite em que ensaiamos medos coletivos, compartilhados há gerações, e aprendemos, com a brincadeira, a lidar com eles.
O corpo que sente antes da mente
A neurociência moderna confirmou que o medo acontece em dois tempos.
Primeiro, ele passa pela via rápida da amígdala, o alarme primitivo que reage antes mesmo de sabermos ao certo o que está acontecendo. Depois, a informação chega ao córtex pré-frontal, que tenta compreender o que a emoção já decidiu.
É por isso que nos assustamos com sombras inofensivas, ruídos no escuro ou filmes que já vimos dezenas de vezes. O corpo teme primeiro; a mente explica depois.
Esse descompasso entre o sentir e o entender talvez seja o que torna o medo tão universal. Ele não depende da razão, mas da memória ancestral gravada em nós. O coração acelera antes da lógica ter tempo de agir. É um lembrete de que somos, ainda hoje, criaturas que tremem diante do desconhecido.
O medo como espelho
Rachman dizia que o mais curioso sobre o medo é que ele não surge apenas quando deveria.
Muitos passam por traumas e não desenvolvem fobias; outros, sem nunca terem vivido algo assustador, passam a temer o que desconhecem.
O medo, então, não é só reflexo de perigo. É também reflexo do significado que damos às coisas.
Os filmes de terror compreendem isso melhor do que qualquer teoria: eles não nos assustam porque mostram monstros, mas porque falam sobre nós. O medo da morte, da solidão, da perda de controle, da loucura, da rejeição… são todos medos profundamente humanos, que se disfarçam sob máscaras diferentes a cada geração.
O susto é apenas o disfarce do abismo interior.
Último Ato
O medo é o limite onde o corpo e a alma se encontram.
Ele revela o que nos ameaça por fora, mas também o que nos perturba por dentro.
Sentir medo é reconhecer que estamos vivos e, portanto, vulneráveis.
É lembrar que toda coragem nasce do contato com a fragilidade.
O Halloween é apenas o rito simbólico desse encontro: uma noite para rir do que um dia nos paralisou.
E se o medo insiste em nos visitar, talvez seja porque ele não veio para nos derrotar, mas para nos ensinar.
Afinal, quem nunca sentiu medo também nunca olhou de verdade para si mesmo.
José Maria Santiago, médico psiquiatra e professor de medicina, é um explorador da mente humana e um aficionado por cultura pop. Entre aulas e consultas, também encontra tempo para debater filmes, séries e games no seu podcast, o Encontroverso, onde o cérebro e o entretenimento se encontram. Especialista em fazer a ciência caber numa conversa de café e em emitir opiniões baseadas em certezas que não tem, acredita que o equilíbrio está entre a compreensão profunda da psique e uma maratona de filmes ruins bem escolhida!
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